Uma tarde de chuva miudinha, que lhe toldava a visão através dos vidros do carro.
Acendeu um cigarro, marimbando-se para os efeitos nefastos na sua saúde, agora que se sentia indestrutível.
Olhava fixamente para aquela casa, igual a tantas outras. Tristemente revestida a azulejos, não faltando a icónica Nossa Senhora de Fátima com os 3 Pastorinhos.
“Ridículo… irónico…”, pensou, expelindo mais uma nuvem de fumo.
Centrou-se nos rostos tristes que usavam a garagem exterior como sala de espera. A dona de casa que via o marido esbanjar dinheiro em álcool e prostituição; a idosa que procurava cura para as artroses; a jovem que queria proteger o namorado dos olhares das outras…
Pessoas que desistiram da vida, de ser alguém, para procurar no oculto a resposta para os problemas que só elas poderiam resolver.
Mas a culpa nunca é nossa, é da Vida, do Destino, do Mau Olhado, do Bruxedo…
Então recorriam à Velha, que com meia-dúzia de rezas, lhes prometia o fim do Calvário. No final, “a pessoa dá o que quer e o que pode.”
“Mais valia gastar mesmo o dinheiro em gajas e vinho”, disse para consigo.
Ele próprio também tinha sido levado à Velha, “para ver se estava tudo bem”. Teve que fazer um enorme esforço para não desatar a rir, da primeira vez. Nas outras vezes sentiu apenas ódio, por todo aquele circo.
E estava na hora do espectáculo terminar.
Olhou para o banco do pendura e viu-a pela primeira vez. A primeira de muitas da sua colecção. Chamou-lhe Helena.
A lâmina prateada parecia ter um brilho próprio, uma alma. Falava com ele. A pega, estilo sabre, ajustava-se perfeitamente à sua mão.
E, como apareceu, desapareceu.
Saiu do carro, ignorando a chuva.
Entrou no pátio e esperou.
Minutos depois, ao cimo das escadas a porta abria-se. Uma mãe com duas crianças pequenas pela mão, com dificuldades na escola. Em vez de lhes dar livros para as mãos, ou incentivá-las a estudar, em vez de as mandar para o campo lavrar, aquela mulher achava que as crias seriam inteligentes por artes mágicas.
Esperou que terminassem de descer a escadaria e subiu. Ergueu uma mão e os protestos que iriam sair das bocas que o rodeavam ficaram presos.
“Boa! Não quero chatisses.”
“É a sua vez?”, perguntou desconfiada a filha da Velha, que era também secretária e recepcionista.
Mas também ela ficou muda e paralizada.
Virou à esquerda em direcção à sala de estar, que era também consultório. As prateleiras do mobiliário estavam repletas de imagens de santos, velas, pagelas e demais ornamentação mística.
“Foi o Pôncio que te mandou cá?”
“Quem?”
“Não és do Pôncio. És das Esferas. Não sabia que agora a Convénio contratava assassinos. Vá… faz o que tens a fazer.”
David hesitou. As Esferas conhecia, mas quem era o Pôncio? Como é que aquela Velha conhecia a Convénio?
“Que se lixe!”
E, no momento seguinte, a cabeça da Velha jazia separada do corpo.
E, como apareceu, desapareceu. Helena tinha cumprido a sua primeira missão nas mãos de David.
Ao passar pela filha da Velha, levantou uma mão e disse “a sua mãe precisa de si.”
Desceu as escadas, calmamente, enquanto um grito lancinante vinha do interior da casa.
Olhou novamente para aquela gente. Sussurrou-lhes pequenos conselhos ao ouvido.
Ao entrar no carro, levantou a mão e cada um foi à sua vida.
Arrancou. À noite, Helena viria de novo. Desta vez, o Padre.