António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

A Ultra Rainha

Junho 28th, 2015

É difícil adjectivar de forma sucinta o Ultra Trail Serra da Freita. Freita, apenas, para os trailers.

Escolhi “Rainha” pois é assim que a Serra se apresenta: Majestosa, Indomável, Impenetrável, Bela, Sedutora, Misteriosa…

Para quem vai pela primeira vez, não faltam relatos, histórias, fotografias, vídeos que avisam: “Não faças isso!”

Na verdade, tudo o que se sabe da Freita leva a que qualquer pessoa racional não se inscreva na prova. No entanto, os trailers não são pessoas normais, muito menos, racionais.

No meu caso, já tinha feito por duas vezes a prova curta e tinha uma vaga noção do que me esperava ao longo de 65km, pelas histórias de amigos e companheiros de corrida. E o cenário não era agradável.

Mesmo assim, após terminar o Ultra Trail do Paleozóico, decidi inscrever-me. O objectivo? O de sempre: chegar ao fim, feliz e realizado por mais um momento de superação.

E às 7h da manhã lá fomos. As duas distâncias mais longas (65km e 100km) partiram em conjunto.

Logo no início as sensações foram boas. Nos primeiros 10km, sempre a subir, o meu corpo reagiu bem, o que me fez sentir mais seguro e confiante. Confiança que aumenta quando encontro o Mestre Carlos Natividade e puxar por nós junto ao primeiro abastecimento.

Neste ponto, vejo um colega de corrida a “roubar” o telemóvel à mulher que o esperava e quase gritar: “Um beijo, mamã! Amo-te muito!” e devolveu o aparelho à mulher que continuou a chamada: “Minha sogra, ele está bem, 10km já estão feitos!”

Esta cena teve tanto de cómica como de emocionante. E eu desatei a correr.

No segundo abastecimento, lá estava novamente o Natividade: “Força, António! Hidratar bem e comer bem!” (como se fosse preciso mandar-me comer…)

Lá estava também o Grão-Mestre José Moutinho, pai do Trail em Portugal, grande Arquitecto da Freita. Alertava os atletas para a Besta que se aproximava, recomendava calma a todos e ainda disparava uns “piropos” para o pessoal dos 100km: “Se querem entrar na Elite, têm que enfrentar uma prova de Elite.”

Então, o que é a Besta?

Não adianta tentar descrever. Eu já tinha visto fotos, filmes e ouvido descrições em viva voz. Mas só lá estando é que sabemos o que é a Besta. Ora, imaginem uma infinidade de pedras sobrepostas, ao longo de uma subida com 1km de extensão, a qual temos que fazer praticamente de gatas e que eu demorei 1h12m a vencer. Pronto… é isso.

Ultrapassada a Besta, estavam feitos 30km. Quase meia prova. Era descer até Manhouce onde me esperava mais uma simpática equipa, onde pontificavam o Luís Pereira (Arquitecto do Paleozóico) e a Carmen Santos Lima.

Ao longo da descida, conheci 3 companheiros de prova: o “Colega de Lisboa”, o “Colega do Porto que trabalha em Beja” e o “Colega Enfermeiro”. Infelizmente, não lhes fixei os nomes, mas formamos uma boa equipa. Decidimos não forçar a barra, dado o calor que já era imenso e lá fomos partilhando histórias.

No abastecimento, os voluntários foram inexcedíveis. Para além de se oferecerem para nos encherem os reservatórios de água e darem todo o apoio que precisávamos, ainda nos deram dicas sobre o trajecto que se seguia e preciosas palavras de motivação. “Vai com calma, António. Está muito calor.”, disse-me a Carmen. E eu arranquei, deixando ainda os 3 colegas para trás. Logo no fundo da rua havia um rio. Não hesitei e enfiei-me lá dentro, com água quase até à cintura. Entretanto, sou apanhado pelo “Colega de Lisboa” e fomos juntos até outra zona do rio, onde se formava um pequeno lago. Sentados com os músculos de molho, vimos juntar-se a nós o “Colega do Porto que trabalha em Beja”. Ali ficamos uns bons minutos. E esta história foi-se repetindo a cada novo curso de água, tão reconfortante para as elevadas temperaturas que os nossos músculos e articulações atingiam. Aos poucos, foi-se juntando a nós uma personagem mítica da corrida em Portugal: Joaquim Adelino, com os seus 67 anos, lutava para, pela primeira vez na vida, concluir a Freita.

Chegamos ao tão ansiado abastecimento das bifanas, das minis e da canja. Aqui ficamos a saber que o “Colega Enfermeiro” tinha desistido. Voltamos a encontrar o Luís Pereira e fomos informados que íamos enfrentar 9km totalmente desprovidos de sombra e de subida permanente.

À medida que os kilómetros se iam sucedendo o “Lisboa” e o “Beja” iam ganhando terreno, enquanto eu ia fazendo parelha com o Adelino. A dureza e extensão da subida eram proporcionais à beleza da paisagem. Éramos pequenos pontos coloridos no verde da Serra que parecia absorver-nos com toda a sua Majestade.

É então que surgem duas novas personagens nesta História. Com o “Lisboa” e o “Beja” já lançados, encontramos o Pedro e o Joel. Seguimos juntos até ao final da subida, mas na descida para a Castanheira o Joel ganhou vantagem. Segui com o Pedro e o Adelino até à Mizarela onde eles ficaram a repousar mais um pouco e eu continuei até ao Parque de Campismo do Merujal, onde estava o último abastecimento: 53km. Nesta altura já tínhamos sido ultrapassados pelos dois primeiros da Elite.

Entretanto, o meu relógio ficou sem bateria e comecei a navegar “à vista”.

No PAC, o Joel esperava por nós. Era altura de tirar o chapéu e colocar a luz frontal. Anoitecia e começava a ficar frio. Por isso, arranquei na frente. Perto da interminável descida para a meta, o Joel alcançou-me e nunca mais o vi, a não ser no final.

Sentia o desafio ganho. Estava ansioso por falar com a Teresa e dizer-lhe como estava bem, mas rede de telemóvel… népia.

Nalguns momentos da descida corri como um louco, mesmo sentindo os dedos dos pés em ferida, mesmo estando perto do limite das minhas forças. Só não corria quando o piso não o permitia.

Entrei no Pavilhão tão desnorteado que até tive que perguntar onde era a meta!

O meu coração saltava, mas desta vez não era do esforço. Aquela “volta de honra” debaixo de palmas, soube-me como ganhar a Maratona Olímpica.

No palco da meta lá estava novamente o Luís Pereira, a Flor Madureira e mais gente a aplaudir e a tirar fotografias. Ao fundo, a Teresa sorria, com aquele sorriso que só ela tem e dizia ao meu pai pelo telefone: ele chegou agora!

Bolas, naquele momento eu queria saltar, rir, chorar, rebolar… sei lá! Mas só consegui fitar o olhar na sapatilha cheia de sangue… e no sorriso da Teresa.

 

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.