António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

A Ultra da Raposa

Junho 1st, 2015

Quando me inscrevi no Trail da Raposa, estava longe de imaginar o que iria passar nas serras de Paredes. Os 37km anunciados inicialmente, passaram para 42km por alturas da abertura das inscrições. A duas semanas da prova passaram para 43km. Sem stress. Gosto destes desafios e a distância mais longa do evento estava transformada em “ultra”, algo que fica sempre bem no CV de um atleta de pelotão.

Mas, ao fim de 10h de prova, de acordo com o meu relógio, eu completei 46,6km. Um bocadinho mais…

E o que se passou durante esses 46600 metros?

A ultra da Raposa teve um início estranho, com uma partida simbólica até à estação de comboios, onde apanhamos o peculiar transporte até ao local da partida real.

Sinceramente, não achei piada à ideia, principalmente pela confusão que se gerou dentro e fora do comboio e por ter atrasado ainda mais uma partida que, por si só, já era tardia, face às condições atmosféricas normais para esta altura do ano (começar uma prova de quase 47km depois das 8h da manhã? naaaah…).

Mas pronto… a corrida lá arrancou, já com o sol alto, a mente cansada da espera pela primeira partida, espera pelo comboio, espera pela segunda partida… enfim… o Trail não havia de ser uma coisa stressante. Mas o da Raposa estava a ser, ainda antes de começar.

Pouco tempo depois da partida “a sério”, começo a ser ultrapassado pelos atletas mais rápidos da distância intermédia, o que significava que havia pouco tempo de separação entre as duas provas, ou seja, mais cedo ou mais tarde, ia haver engarrafamento no monte.

E houve. Numa zona extremamente técnica, onde só se podia descer agarrado a duas cordas, estavam 1200 atletas. Fui empurrado, levei encontrões e o tempo a passar. A zona é belíssima, sem dúvida, mas como pode ser verdadeiramente apreciada nestas condições?

Cheguei ao primeiro abastecimento com 1h15 de prova. O tempo limite apontado no regulamento era de 1h30 e eu comecei a fazer contas de cabeça. A conclusão era óbvia: nunca iria chegar ao fim dentro do tempo limite, face ao que ainda tinha pela frente.

Iniciei uma luta contra o tempo, dificultada pelo calor e pelo percurso. Eram parcos os troços onde me sentia à vontade para correr. Arrisquei em descidas, mas as subidas e os longos trajectos técnicos atiravam-me para trás.

Chegado ao abastecimento dos 19km, tentei dar mais algum “gás”, dado que aos 24km viria outro abastecimento. Eram 5km de força. Mas… 24, 24,5, 25, 26… o abastecimento? Tinha desaparecido e eu quase sem água.

Já sem noção de tempo e espaço (o mapa constante do dorsal começava a não corresponder aos dados registados no meu relógio), entrei numa luta interior para levar a prova até ao fim, mas sem fazer nenhum disparate que pusesse em perigo a minha saúde. As pernas estavam bem, mas a cabeça não.

Estava eu nos meus dilemas internos, acabar ou desistir, vou ser barrado ou não, onde raio anda o abastecimento que desapareceu, quando aparecem dois senhores simpáticos a oferecerem água. “Agora é sempre a descer até Recarei e depois 13km até à meta.”

Nesta altura eu estava convencido que era o último, pois tinha perdido o rasto aos colegas que seguiam atrás e à frente.

Finalmente surgiu um abastecimento, já a corrida tinha passado os 30km (calculo…) e aí estava uma carrinha cheia de desistentes. “Nem pensar… Corre!” esta voz interior tornou-se mais forte quando ouço “O Eduardo vem aí…”. O Eduardo Merino, atleta vassoura da prova.

Comecei a correr feito louco, com uma força que não tinha. O facto do vassoura estar a aproximar-se dizia-me que eu era o último.

Não me recordo muito bem do que se passou a seguir. Lembro-me de um carrossel de subidas e descidas, uma dor lancinante na coxa direita (abençoado Ice Power), uma subida tipo “Elevador do Paleozóico”, um telefonema da Teresa que terminou comigo a chorar, longos quilómetros a correr ao lado da autoestrada e aquele barulho terrível dos carros permanentemente a passarem, uma zona de escalada em que fui literalmente de gatas, campos de milho, água, voltinhas dentro da cidade de Paredes, a Teresa a acenar ao longe, eu a correr em direcção a ela como se a minha vida dependesse disso, 3 pessoas com ar aflito a perguntarem por familiares que supostamente ainda estariam em prova, a meta, correr mais um bocadinho, a meta e finalmente o chão… finalmente a Teresa.

10 horas e uns trocos e a sensação de ter completado a prova mais dura que fiz até hoje.

E nunca o patrocínio da minha camisola fez tanto sentido: “Olimpo”.

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.