António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

Purificação II

Janeiro 22nd, 2009

A sede de matar não lhe saía da boca. Recordava-se ainda do prazer que viver uma semana antes, o sangue nas vestes do padre, o terror nos olhos dos estúpidos fiéis a eficácia da sua lâmina.
Agora queria mais. Sentia que aquela noite tinha sido apenas o início. Precisava continuar o seu trabalho de purificação. Era necessário derramar mais sangue. Mas de quem?
Não foi preciso muito para descobrir uma simpática idosa que proclamava conseguir ver aquilo que os médicos não viam. Vivia nos subúrbios, numa zona já bastante rural. Teve que atravessar uma longa estrada pelo meio do monte para dar com a aldeia, depois o seu jipe mal passava nas estreitas vielas que conduziam ao ermo isolado onde ficava a casa. “Que mau gosto!”, pensou. A casa estava revestida de azulejos azuis, com um pequeno jardim, excessivamente ornamentado, onde se sobressaía uma Nossa Senhora de Fátima, devidamente acompanhada pelos três pastorinhos. “Que desplante”.
Viu as pessoas. Mulheres, gordas, mal arranjadas, feias. Provavelmente recorreram à velha curandeira para perguntar porque é que o marido andava com outras. Bastava olharem para o espelho. Rostos tristes, amargurados, procurando naquela velha a resposta para os problemas e o caminho para a felicidade.
Ficou ali toda a tarde, observando. As consultas demoravam cerca de meia-hora. Algumas mais, outras menos. Era um entra e sai. Táxis, carros de aluguer. Maridos impacientes a fumar. Crianças procurando motivos de distracção.
Ainda não era o momento certo. Voltaria no dia seguinte.
E, no dia seguinte, voltou.
As pessoas pareciam as mesmas. Pensou em esperar que todos fossem atendidos, para ele próprio entrar e ter a sua consulta. Mas parecia um rio de gente sem fim. Então, quando viu uma família a sair, avançou. Novas clientes preparavam-se para entrar, mas ele impediu. Bastou um olhar para aterrorizar aquela pobre gente. Subiu as escadas, sendo recebido pela filha da velha. “Não o vi a esperar.” “Mas acredite que estou há muito tempo à espera”.
Não disse mais nada. Foi conduzido à sala de estar, o consultório. A velha estava sentada num cadeirão de madeira, segurando uma cruz e um terço. À semelhança do jardim, a decoração era excessiva. Cristaleiras a abarrotar de cacos. Uma mesa com artigos para venda. “O merchandising da crendice”, pensou. Amuletos, imagens de santos, pagelas.
“Então, meu filho, o que o trás cá?”
Sentou-se e fechou a porta.
“A porta não pode estar fechada”.
“Pode, pode…”
“N…”
“Chiu! Quem vai falar sou eu.”
A velha preparava-se para chamar pela filha mas, num instante, viu a espada do homem apontada à sua garganta.
“Podes gritar e morrer de imediato, ou podes ouvir-me recitar a causa da tua condenação”.
A velha não disse nada. Ele concluiu que era sinal da escolha da segunda hipótese.
“Vou-te matar, porque és uma velha maluca que se aproveita da ingenuidade das pessoas.”
“Não sou maluca, tenho um poder… um poder que uso para ajudar as pessoas.”
A velha falava tranquilamente, como se não tivesse uma espada apontada à garganta. “Típico dos loucos”, pensou.
A velha continuou. “Não me aproveito de ninguém, não cobro dinheiro, cada um dá o que quer.”
“Cínica! Pensas que não sei quanto ficam os trabalhos que fazes a altas horas da noite em capelas perdidas nos montes? Chegas a ganhar mais numa noite que muita gente num mês inteiro. És uma prostituta!”
A velha começou a chorar. Agarrava com força a cruz e o terço. O homem sentiu-se feliz e, num único golpe, separou a cabeça do resto do corpo. Rápido e indolor. “Tive pena de não a fazer sofrer mais”.
Usando sempre a espada como ferramenta, rasgou as roupas da velha e abriu-lhe o corpo, expondo os órgãos.
Sentia-se extasiado ao ver a facilidade com que a lamina atravessava o cadáver.
Limpou a espada à toalha de renda que estava sobre a mesa. Abriu a porta encontrando a filha no corredor. A mulher não conteve agudos gritos de dor ao ver a cabeça de sua mãe nas mãos do homem. O que terá acontecido depois de ter visto o corpo todo aberto?
Saiu. Os clientes que esperavam, ao verem o macabro troféu, ficaram estarrecidos… um ou outro não conteve os vómitos.
“Tomai a cabeça da vossa bruxa. Como podeis ver, era um ser humano como outro qualquer. O resto do corpo está lá em cima. Tive o cuidado de o deixar aberto para verem que era perfeitamente normal… talvez um pouco de gordura mais, mas isso todos vocês têm. Agora, voltai para as vossas vidas patéticas. Estais doentes? Ide ao médico. Tendes problemas? Procurai psicólogos. Os vossos maridos andam a encornar-vos? Olhai para o espelho. Esqueçam as bruxas… porque eu vou matá-las a todas. E mato quem se meter à minha frente. Boa tarde a todos.”
Atirou a cabeça para o chão. Acendeu um cigarro e saiu, com a mesma calma com que tinha entrado.

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.