António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

A música parou

Fevereiro 16th, 2010

A música parou.
Reinou o silêncio.
O Maestro baixou os braços, olhando incrédulo a partitura que atingira o seu último compasso.
Não mais os violinos e as violas foram fustigados por arcadas furiosas, nem os pulmões encheram de ar os tubos dos trompetes, das trompas e dos trombones.
Os ágeis dedos quedaram-se sobre os clarinetes e as bucólicas flautas adormeceram no colo dos seus mestres.
O pastoral oboé recolheu-se obscuro e o nobre fagote juntou-se à tuba na sua grave meditação silenciosa.
A agitada percussão paralisou, rolando as baquetas pelo chão.
Cessou o lamento do violoncelo e o pesado caminhar do contrabaixo deixou de se ouvir.
Era o fim.
Já longe ia a doçura, a loucura, a explosão do som.
Tudo agora eram memórias.
E aquele Maestro chorava.

Abriu-se a porta da rua.
Precisava de ar.
Precisava respirar.
Precisava inundar os pulmões de oxigénio.
Mas não conseguiu…
Respirava com dificuldade.
Pelas narinas absorveu um frio gelado.

Era a ausência, a saudade, o saber que nunca mais tocaria aquela sinfonia, que fora inventada numa noite de Verão e que numa noite de Verão tinha tido o seu final.

Frio.
Tremia e sentia uma enorme vontade de se afogar em lágrimas quando a chuva caiu sobre si.
Teve dúvidas se a o líquido que o afogava vinha do céu ou dos seus próprios olhos.

Era o fim.

Só, frio, húmido.

Aquilo que tinha desenhado com uma multidão era agora vazio.

Restaria a memória.

Fechou os olhos e ouviu. Ouviu de novo, como se fosse a primeira vez. A sinfonia começava com um misterioso som azul, que saltitava entre tons de verde e cinza.

Mais um gesto e o andamento mudava e mudava a cor. Dourado. Sorria de prazer enquanto conduzia os músicos pelo ondular das suas mãos.
Aquela música dava-lhe uma felicidade nunca antes vivida.
E transpirava. Um calor diferente de todos os outros… dourado, azul, verde, cinza.

Novo andamento, novo gesto e uma explosão de cores quentes.
O suor corria agora pelo corpo todo e os músicos explodiam com ele. Finalmente. Era a entrega total.

Depois do êxtase voltava a doçura no seu mais puro azul.
E era o suor no corpo.
E eram as lágrimas no corpo.
E era o frio no corpo.

Tudo não passaria de um sonho?
Uma memória?
Afinal… aquela sinfonia existia?

Estava só. Ignorado. Desprezado.

“Parabéns, parabéns…” ouvia. Mas de pouco, ou nada, serviam os elogios.
Nunca os procurou.

Só queria a sua sinfonia de volta. Só queria não viver com o peso de uma memória para sempre perdida.

Queria voltar a abrir a partitura e deslizar as mãos por aquelas pautas desenhadas com estrelas e luar.

Mas estava frio.
E só.

Decidiu que iria morrer ali, pois nada teria mais sentido. Jamais repetiria aqueles momentos e não se poderia refugiar na doce memória, pois esta se tornava amarga e fazia-o sangrar.

E sangrava. E à sua frente formava-se uma poça de sangue, lágrimas e chuva. Chorou com ainda mais força, o sangue esvaía-se e o vento cortava-lhe a pele. E o choro era agora um grito.

A dor era extrema e indescritível.

Ele que julgava ser tão forte, ser o dono do Mundo… jazia naquele beco, frio, só e molhado.

Subitamente… ouviu um choro que não o seu… um grito que não o seu.

Afinal não estava só. Valia a pena levantar-se? Sim!

Ergueu-se cambaleou contra o vento e contra a chuva. Atrás de si o rasto do sangue.

Bastou um olhar, um abraço, um gesto, uma mudança de andamento e o vento parou. A chuva iria parar e o sangue… Esse continua a correr à espera que a cicatriz da saudade feche… algum dia… quem sabe.

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.