António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

O país é demasiado pequeno…

Junho 24th, 2020

É a frase repetida exaustivamente por aqueles que são contra a regionalização, bairrismos, picardias entre regiões, ou o simples orgulho pelo local onde se nasceu e/ou vive.

“Ah… tu nem és do Porto!”, ouço igualmente muitas vezes.

Nasci em Mafamude e vivi quase 40 anos em Crestuma. Entretanto, já morei em Olival e agora em Pedroso. Tudo em Vila Nova de Gaia. É só atravessar o rio. O mesmo rio que banha as duas cidades.

O mesmo rio que serve de cenário aos festejos de S. João.

Estudei cinco anos no Porto e desde 2002 que lá trabalho. Casei com uma portuense nascida em Santos Pousada, freguesia do Bonfim, que tem Santa Clara como padroeira.

Talvez isso não faça de mim portuense (nem quero), mas não posso amar uma cidade que me diz tanto e onde passo mais de oito horas do meu dia?

Não posso amar a cidade onde estudei, amei, chorei e cresci como ser humano?

Posto isto…

Sim, Portugal é um país demasiado pequeno para guerras internas. Mas é igualmente demasiado pequeno para haver tanta desigualdade entre Lisboa e o resto do País. O problema de Portugal e que me leva a ser defensor convicto da regionalização, não é Lisboa vs. Porto. É Lisboa vs. o Resto do País, de Trás-os-montes ao Algarve. Do Algarve à Madeira e aos Açores.

Face a outras regiões sistematicamente esquecidas por sucessivos governos, o Porto nem se pode queixar muito. Não por qualquer benesse que venha da Capital, mas porque em séculos de história sempre teve que fazer das Tripas Coração e remar contra a maré. E com isso cresceu e tornou-se o que é hoje.

Desde a história das tripas, passando pelo Cerco e pelas invasões francesas, que o Porto e as suas gentes tiveram que dar o corpo ao manifesto pela Cidade e pelo País. Sim, pelo País.

A História está escrita. Queiramos saber lê-la e interpretá-la.

E quando falamos em Porto, falamos nas cidades que orbitam as suas fronteiras e que com ele têm uma relação visceral, de Espinho a Vila do Conde.

Veio a Pandemia e o Porto levou com a primeira onda de choque. As inúmeras relações comerciais com Espanha, Itália e até mesmo a China, enfiaram o vírus directamente nas veias do Norte de Portugal. Porque o Porto alimenta as zonas industriais de Vila Real a Aveiro.

E em Lisboa, sentados no seu trono imperial, chamaram-nos de tudo e mais alguma coisa. O Porto agonizava. Lisboa troçava.

Mas, aqui, não ficamos “a ver se chove”. Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. E, desde logo, soubemos que, este ano, o S. João era à varanda, à janela, no quintal.

Era, seria, foi no único sítio onde faz sentido: no coração dos portuenses, gaienses e de todos aqueles que nesta noite iriam folgar pelas ruas.

O Expresso veio dizer que não. Foi um enterro, dizem eles.

Um país tão pequeno e não conheceis os vizinhos.

Hoje, a DGS, lançou o seu apelo para os cuidados a ter na noite de S. João. Hoje, quando estamos todos de ressaca e ficamos a saber que Lisboa nos passou à frente nas estatísticas mais tristes da Pandemia. Bravo!

Mas, voltando atrás…

Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. Rui Moreira saltou para a frente da batalha. Andou pelas ruas. Enquanto que, com uma mão, pedia-nos para ficar em casa, com a outra impediu que nos impusessem novo Cerco. Porque o Porto não é só Porto. E de Vila do Conde a Espinho, há pessoas que trabalham no Porto, recorrem aos hospitais do Porto, precisam do Porto.

A tempestade parece ter passado e o Porto começou a abrir. Mas à vontade, não é à vontadinha.

O espectáculo da superstar do confinamento foi adiado (adiado… imaginem se fosse cancelado) e caíu qualquer coisa para os lados da Sampaio e Pina em Lisboa. Quando somos os reis da empatia, temos destas coisas. Sentimos as dores dos outros, mesmo que os outros não se queixem. Mesmo que seja só um arranhãozinho no joelho.

Uma frase de Rui Moreira foi retirada do contexto, por alguém que tanto usa as redes sociais para se insurgir contra o mau uso das redes sociais, e voltaram a atirar-nos com o rótulo de parolos e incultos, fanáticos por futebol, ignorando que, por exemplo, até já houve concertos na Casa da Música, por estes dias.

Eles não sabem, nem sonham o que é ser do Porto.

Vai ficar o futebol, dizem eles. Mas curiosamente foram eles que se insurgiram quando, mais uma vez, Rui Moreira, tentou adiar o tal jogo de futebol.

Uma no cravo, outra na ferradura.

S. João, Santo António, e todo o coro celestial cantaram a Karma Police bem alto na noite de ontem.

CONVÉNIO – O Convite

Junho 21st, 2020

O salão estacou.

De cachimbo numa mão e whiskey na outra, David media cada rosto e preparava-se para, perante os seus inimigos, desfiar a história dos seus últimos vinte e três anos.

Pela primeira vez, desde sempre, aludiu à sua patente militar, ainda para mais com o objectivo de reclamar um privilégio. Mas, sentindo a sua vida perto do fim, decidiu ironizar na cara daquela gente que ansiava por lhe deitar a mão.

A audiência dividiu-se entre a estupefacção e a fúria. O desplante do maior inimigo de todos eles. Ester estava prestes a rebentar mas, ali, era a última a falar. Não pertencia à Lux, era agente mercenária, como já tinha sido da Convénio e só por grandes favores na cama de Pôncio podia assistir à cena. Por sua vez, Miriam tremia de medo e de dor, com receio de cruzar, novamente, o seu olhar com o de David.

David começou:

“Verão de 1997. Estava em casa a matar tempo, entediado até aos ossos. A minha vida fora sempre assim. Enquanto os meus amigos namoravam, praticavam desporto, eram músicos, iam de férias com os pais, eu ficava em casa a ler, ver televisão ou, simplesmente a fazer nada!”

Havia dor e rancor na voz de David. Era visível que as memórias que o assaltavam não eram boas.

“As minhas namoradas eram as miúdas da TV ou as modelos do catálogo La Redoute.

Naquele dia, a meio do mês de Agosto, a campainha tocou perto da hora de jantar. Nem me mexi. Os meus pais estavam em casa. Ouvi vozes e, passados uns segundos, a minha mãe chamou-me e, pelo tom de voz, percebi logo que a coisa não era boa.”

Pôncio interrompeu:

“Nós estamos familiarizados com os métodos de recrutamento da Convénio. Por favor, avance!”

“Não! Se não entenderem isto, não entendem nada!”

David, arriscava. A sua voz era já imperativa.

“Estava a dizer… A minha mãe chamou-me à sala. Para além dos meus pais, encontravam-se lá mais quatro pessoas: um homem de fato e olhar distante, um militar (calculo que Marechal… general, no mínimo), um padre (pelo menos, usava gola eclesiástica) e o Saúl, que viria a ser o meu Mentor na Convénio.”

“Sabe os nomes, ou o papel, dos três desconhecidos?”

“Vim a saber mais tarde que eram as Esferas. Apenas isso. Nenhum deles abriu a boca enquanto lá estiveram.”

A existência das Esferas sempre fora um mito para a Lux. Mas Pôncio acreditava na sinceridade de David. Sentia-o no seu íntimo.

“Então… sempre existem.”

“Eu vi-as. Disseram-me quem eram, acreditei. E, depois disso, estiveram em cada segundo da minha vida. Mas… continuando…

Fiquei, como é claro, surpreendido com a cena. O meu pai torcia os dedos das mãos, visivelmente triste, prestes a romper em lágrimas. A minha mãe avançou para a explicação do que se estava a passar.

Pelos vistos, poucos dias depois de eu nascer, aqueles três homens desconhecidos apareceram lá em casa com outro. Na altura foi o outro que falou. Disse aos meus pais que eu era uma criança especial e que deviam proteger-me ao máximo até eu completar 18 anos. Em troca, a minha família iria receber uma generosa quantia em dinheiro, ao longo desses anos e mais ainda ao chegar à maioridade legal e poderiam orgulhar-se do meu futuro brilhante.”

“Disseram a si, ou aos seus pais, porque era especial?”

“Não. Só soube depois, ao chegar à Convénio. Mas voltando à história…

“Nunca disseram aos meus pais porque é que eu era especial. Mas o dinheiro fazia muita falta. Éramos pobres. Os meus pais sofreram muito com o fecho das indústrias nos anos 80. Nunca ganharam mais que o salário mínimo. Eu preparava-me para ir para a faculdade e falei nisso mesmo. Aí, foi o Saúl que falou. Disse-me que eu poderia ir para a faculdade na mesma e fazer a minha vida normal, mas iria passar a morar com eles, indo a casa no Natal e no Verão. Ou seja, aos dezoito anos ia, finalmente, para um colégio interno… quase…”

“E como reagiu a isso?”

“Honestamente? Pensei… «que se lixe!» A minha vida era um tédio, finalmente acontecia algo inesperado e, aceitando o que me estavam a propor, poderia dar alguma folga financeira à minha família… era muito dinheiro!”

David acentuou a palavra «muito».

“E quando foi conhecer a sua «casa» nova?”

“No dia seguinte. O Saúl apareceu à minha porta, num carro espectacular, vidros fumados… Senti-me um gajo mesmo VIP. Lá dentro já vinha o Miguel, no caminho íamos buscar o Emanuel e, por fim, porque morava mais longe, o Caleb.”

“Já conhecia algum deles?”

“O Emanuel. Era meu amigo de infância. Fiquei tão contente, como surpreendido quando o carro guinou em direcção a casa dele.”

“E depois?”

“Fomos para a nossa nova casa e, depois de vocês nos tentarem matar a todos, fizémos a vossa vida negra durante anos!”

CONVÉNIO – A Audiência

Junho 14th, 2020

“Mas o que vem a ser isto?”

Uma voz forte, colocada e afectada, num certo tom “dandy”, ecoou nas profundezas do seu cérebro.

Abriu os olhos e deu por si esfarrapado, no centro de um imenso salão, rodeado por quatro sombras, iguais às que o tinham capturado.

Percebeu que era a sua hora.

“Este homem é o mais alto oficial da Convénio. É nosso inimigo e prisioneiro mas, pelo cargo que ocupa, deverá ser tratado com respeito e dignidade. Levem-no para um banho e para vestir uma roupa lavada e digna. Depois, terei todo o gosto em o interrogar.”

A voz continuava afectada e determinada. David conseguiu sentir a fúria dos soldados que o tinham prendido. Afinal, ele tinha mandado uma série de companheiros deles desta para melhor, não só agora, mas ao longo de muitos anos.

“Olha… lá estão elas…”

O semblante gélido de Ester, contrastava com o ainda presente esgar de dor de Míriam. Não deveria passar tão cedo e não deveria ter passado muito tempo desde que desmaiara.

Fingiu-se fraco, sem forças e deixou-se arrastar pelos soldados.

Levaram-no para um quarto (uma cela?) com cama e uma casa de banho anexa, com um pequeno chuveiro. Havia toalhas e roupa. De facto, não seria um prisioneiro comum e a estadia naquele Palácio seria, no mínimo, interessante.

Tomou um banho retemperante e vestiu as roupas que lhe deram. Calças de ganga simples e uma t-shirt com o símbolo da organização estranha e pouco secreta que agora o capturava: um sol, cortado a meio como se estivesse a surgir no horizonte, com doze raios a despontar para o céu e as letras LUX.

Havia também uma mesinha com chá e café. Serviu-se do chá, do qual era apreciador.

Esperou.

Alguns minutos depois, quatro soldados, visivelmente aborrecidos vieram buscá-lo e levaram-no por uma sucessão de corredores ao imenso salão onde já tinha estado. Percebeu que estava reunido o Estado-Maior da LUX e que, à sua frente, num vistoso trono, sentava-se o dono da voz forte e colocada, o “dandy” que chefiava a estranha e pouco secreta organização, há décadas, talvez séculos.

“David! Finalmente encontramo-nos!”, quase gritou o Grão-Mestre, levantando-se do trono e estendendo a mão em direcção a David.

“Peço desculpa pelos modos dos meus soldados e por não ter conseguido uma farda digna da sua patente mas, muito honestamente, desconheço como são actualmente as fardas da Convénio. Deixe-me dizer-lhe que, apesar de adversários, é uma honra apertar-lhe a mão! Os seus feitos, precedem-no e são admiráveis, mesmo que isso tenha custado muitas vidas à nossa organização.”

David não estranhou os galanteios do homem que tinha à sua frente. Sabia que estava a ser sincero. Pôncio – assim se chamava a personagem que parecia ter parado algures na Revolução Industrial – era famoso por gostar da táctica, da estratégia, do combate, mais do que do resultado final das batalhas.

Apesar de inimigos, o Grão-Mestre da Lux cumpria um escrupuloso código de guerra, que ambas as organizações estranhas e pouco secretas, herdaram de lutas milenares.

Estendeu a mão e retribuiu:

“É uma honra, senhor.”

“Sabe, David, os meus homens, se pudessem, já o tinham morto, não sei antes o torturarem primeiro. Afinal, foram mais de vinte anos de lutas e o senhor ceifou muitas vidas da Lux e não só. Confesso que, também eu, estou ansioso por o castigar e fazê-lo pagar por tudo o que nos fez. Mas antes, sinto que devemos falar sobre tudo o que se passou, não acha? Acho-o uma pessoa fascinante e, neste momento, vale-me mais vivo que morto.”

E, por incrível que pareça, tudo isto foi proclamado num tom jovial. David quase que imaginou um copo de brandy na mão direita de Pôncio.

O diálogo era observado atentamente por Ester e Míriam que ocupavam uma posição lateral. Os oficiais da Lux tentavam, incomodamente, manter a pose do seu líder, mas nos soldados era visível o ódio. David estava a ser analisado de alto abaixo e conseguia ler os pensamentos de todos no salão.

“De facto, temos muito para falar, tanto que serão necessários vários dias.”

“É verdade, meu caro, é verdade. Mas, como sabe, temos, literalemnte, todo o tempo do Mundo.

Podemos começar por umas pequeninas questões?”

“Força.”

Era chegada a hora. Sabia perfeitamente o que lhe iriam perguntar e como iria responder. Portanto, relaxou e divertiu-se.

“Porque se deixou apanhar?”

“Foi uma missão ordenada pelas Esferas da Convénio.”

“As Esferas? Sempre achei que fossem um mito… Então… existem mesmo… e estão a rastreá-lo? São capazes de o vir buscar?

“Como acha que sobrevivemos após o ataque ao Palácio? Foi obra das Esferas. Eu sou obra das Esferas. Quanto ao rastreio, desliguei-o pouco antes de desmaiar.”

“Mas assim, a sua missão deixa de fazer sentido. O objectivo era descobrir onde estamos, certo?

“No momento em que aceitei a missão, deixou de ser da Convénio e passou a ser minha.”

“Porque não matou a Ester e a Míriam?”

“Seria bom de mais para ambas. Quero que a Ester perceba que vale zero à minha beira e que a Míriam sofra mesmo muito.”

“Aqui dentro não vai conseguir nada disso.”

Assim como no jardim, Míriam irrompeu numa gritante agonia de dor. Armas apontaram à cabeça de David mas, ali dentro, o Grão-Mestre tinha poder absoluto.

Pôncio pareceu perder um pouco da portura:

“Não acha pouco cordial atacar um dos meus soldados, na nossa própria casa?”

“Peço desculpa. Foi um reflexo.”

“Porque se desligou da Convénio?”

“Estou farto. Cansado.”

“Não acredito.”

“Pense na minha história, ponha-se no meu papel, sentirá o mesmo que eu.”

“Talvez… Por falar nisso. Está na hora de nos contar tudo. Quantas pessoas compõem a Convénio neste momento?”

“Uma. Eu. Há depois agentes que recruto conforme as missões. Mas já não confio em ninguém.” E olhou para Míriam que se recompunha do último ataque.

“Não acredito.”

“Acha que, na minha posição, iria mentir? Basta um estalar de dedos e eu morro aqui dentro. Na verdade, não tenho nada a perder. Estou nas vossas mãos.”

“Verdade. Admiro a sua coragem e frontalidade.

Tragam uma cadeira a este homem. Vamos ter muito que conversar. Por favor, comece do início. Fale-nos do ataque ao Palácio.Como sobreviveu? Como é que as esferas o salvaram?”

“Sugiro começarmos antes disso. Como fui recrutado. Peça para me trazerem um bom whiskey e um cachimbo, por favor. Já que não tem direito a uma farda decente, David Henriques, Marechal da Ordem Convénio, reclama algum privilégio digno da sua patente militar.”, disse, imitando despudoradamente o tom de voz do seu interlocutor.

CONVÉNIO – A captura

Junho 13th, 2020

“David… juro que não te entendo…”

“Mas vais entender, em breve. Vinte e três anos a, literalmente, dar o corpo às balas, a tudo. Estive quase morto uma série de vezes, vi a morte de frente e mesmo do outro lado. E agora, chegas aqui e pedes-me para me entregar.”

Saúl ficou em silêncio, pois sabia que era verdade. David tinha sido o melhor recruta que já alguma vez tinha visto. O seu futuro como soldado seria, certamente, promissor. Sem dúvida que chegaria a oficial, a líder. Mas tudo se precipitou naquela tarde de Junho, há vinte e três anos, quando o Palácio da Convénio foi atacado e destruído. David fora lançado às feras e agora era um guerreiro solitário que continuava a manter viva a alma de uma organização mais estranha que secreta.

“Eles estão a chegar… Depois dos primeiros cinquenta vêm cem… Já estou habituado a levar no lombo.”

“David, não tornes isto mais difícil.”

“Aviso já: depois de estar lá dentro as coisas serão à minha maneira.”

“Como assim?”

A quietude do jardim foi interrompida por um burburinho de passos, muitos passos. De todo o lado ergueram-se sombras. Os cinquenta.

Da mesma forma que tinha aparecido, Saúl desaparecera. David permanecia calmamente no seu banco de jardim. Fechou os olhos e conseguiu ver claramente os seus cinquenta captores. Em poucos segundos poderia destruí-los, mas a sua mente fixou-se em duas figuras femininas que observavam a cena de longe: Ester e Míriam.

Ambas já tinham trabalhado para ele. Cedo, Ester deixou-se seduzir por uma carreira a solo, trabalhando quase exclusivamente para a organização estranha e pouco secreta que agora o tentava prender. Míriam tinha-o ajudado em várias missões, mas deixou-se seduzir por Ester e acabou por entregar aquele que nunca poderia ser encontrado.

Abriu os olhos e procurou a sua antiga agente. Ela fitava-o ao longe, com o rosto manchado pela culpa. Ester exibia o seu semblante orgulhoso por, finalmente, subjugar o seu antigo chefe. Achava ela…

David sorriu quando cruzou o olhar com Míriam. E, nesse momento, uma dor excruciante invadiu o corpo da mulher. De alto a baixo, cada célula era dor, levando-a a tombar, enquanto se contorcia em espasmos e gritos. Os soldados, apanhados de surpresa, começaram também a cair.

David permanecia calmo e sorridente. Ester avançou em fúria sobre ele, mas um buraco abriu-se sob os seus pés.

“Está na hora de animar isto…” pensou David.

O cenário era bizarro.

Cinquenta soldados fortemente armados, gritando como bebés aflitos, no chão. Uma mulher enterrada com a cabeça de fora, sem se conseguir mexer. Outra mulher num patamar de histeria, para lá da loucura. E um homem calmo, observando a cena a rir às gargalhadas.

“Assim vai ser difícil cumprir o plano do Saúl…”

A sua mente soltou os soldados e iniciou a luta com cada um deles. Os cem já vinham a caminho e, apesar da sua infinita calma, lutar contra cento e cinquenta operacionais, não era fácil. Portanto, tinha que começar a eliminar alguns e depois deixar-se levar, quando o cansaço começasse a retirar-lhe o discernimento. E era importante manter Ester dominada. Acima de tudo, não queria ser preso por ela. Preferia morrer ali mesmo.

O que aconteceu nos minutos seguintes, seria facilmente descrito como um banho de sangue e cabeças decepadas. David, fez o que tantas vezes tinha feito e que até já podia fazer de olhos fechados. A sua espada, que tinha usado pela primeira vez numa noite de Inverno, há vinte e três anos, dançava e rodopiava em todas as direcções, mas com critério bem definido: pescoços.

Mas David nunca deixou de ser humano e os humanos cansam-se. Estava na hora de cumprir o plano e deixou-se atingir, uma, duas, três, muitas vezes… Antes de perder os sentidos conseguiu ver Ester a sorrir e a sair do buraco onde a tinha enfiado. Pelo menos não fora ela quem o prendeu. Via também os espasmos de Míriam a pararem e a jovem recuperar um pouco da lucidez. Viu sombras levantarem-se sobre si. Perdeu o domínio do corpo, da mente e a luz do dia apagou-se.

CONVÉNIO – O banco de jardim

Junho 11th, 2020

Sentou-se no banco do jardim. O mesmo banco de jardim onde, nos últimos tempos, recebia as missões.

O Chefe chegava, ou melhor, aparecia e começava a falar. Falavam muito, como irmãos. Nem pareciam chefe e subordinado.

Mas ele não era um subordinado qualquer. Era único. O último.

Vinte e três anos depois de ter sido recrutado para uma estranha e secreta entidade, mais estranha que secreta, ele era o último. E o Chefe. Personagem etérea que se materializava ao seu lado nas mais estranhas ocasiões, sendo aquele jardim o seu local de eleição.

Outras vezes era quando conduzia.

Naquela tarde, como em tantas outras tardes, sabia que tinha que estar ali. Sabia também o que iria acontecer de seguida, mesmo antes de o Chefe lhe pedir a mais dura das missões, aquela que, como ele, seria a última.

A sua mente vagueava entre o passado e o futuro. Entre tudo o que aconteceu nos últimos vinte e três anos e o que aconteceria nos três meses seguintes.

Finalmente a sua aprendizagem estava concluída e, em breve, o Chefe deixaria de ser Chefe, porque a sua existência, simplesmente, deixaria de ter sentido.

“Boa tarde”.

“Boa tarde, Chefe.”

“Nunca me chamaste «Chefe»…”

“Foi a primeira e a última vez. Acredita, foi mesmo a primeira e a última vez, Saúl.”

“O que queres dizer com isso?”

“Diz-me tu, ao que vens.”

“Tenho uma missão muito importante para nós…”

“Nós? Quem? Eu? Tu? Ou o que resta daquilo a que em tempos pertencemos?”

“Ainda pertencemos, David. Nunca poderás sair do Convénio.”

“Que Convénio? O Convénio morreu, há vinte e três anos, naquela tarde. O que restou depois daí foram quatro putos deslumbrados e assustados. E agora resto eu. E tu.”

“Sabes muito bem que não… tens Agentes…”

“Pára! Que Agentes? As que, neste mesmo jardim, me juraram fidelidade eterna, mas que depois fugiram ou me traíram. Até Cristo teve mais companhia no cimo do Calvário.”

O silêncio instalou-se. Saúl, o Chefe, tinha sido um verdadeiro Mentor de David. Mas este não era mais um adolescente destemido. Tornara-se cerebral e conseguia agora racionalizar tudo o que lhe tinha acontecido, desde que tinha sido recrutado pela Convénio.

“Diz lá… que queres que faça?”

“Precisamos que te entregues. Daqui a pouco, chegará a este jardim uma equipa deles para te levarem. Precisamos que te deixes prender, para te monitorizarmos lá dentro. Pode ser a grande oportunidade para a Convénio voltar a ser o que era…”

“E como é que eles sabem que aqui estou? Eu não sou rastreável. Nunca fui. Por isso é que ainda aqui ando a deambular…”

“Foste traído…”

“…mais uma vez e desta vez pela Miriam.”

“Como sabes?”

“Do mesmo modo que sei que a Ester vem com ela e cinquenta marmanjos, soldados rasos. Os burros ainda não aprenderam que não me apanham assim, mas eu entro no teu teatrinho.”

“David… o que se passa que eu não sei?”

“Vinte e três anos comigo e não me conheces, não me viste crescer, lutar contra esta gente e, acima de tudo, evoluir. Os cinquenta que aí vêm, não vão sobreviver para contar a história e juro-te que a própria Míriam vai desejar ter morrido.”

Dias do fim – parte 15 – a última

Maio 31st, 2020

Foi a 12 de Março que abracei o meu filho mais velho pela última vez, sem saber quando voltaria a fazê-lo. Inventei anestesia para a distância.

Foi a 13 de Março que saí do meu emprego, sem saber quando voltava. Inventei-me um novo profissional.

Foi a 14 de Março que deixei ao meu pai um frasco de gel, o número do SNS24 e mil e uma recomendações que sabia que ele não compreendia e que, provavelmente, iria ignorar. Inventei um antídoto para a angústia.

Foi a 14 de Março que comecei a contar os dias e contei-os até perder a conta.

Inventamos formas de encher os dias.

Foi a 15 de Março que tentei ver televisão pela manhã, enquanto fazia exercício. Aguentei 5 minutos. A TV, não o exercício. Fiz muito exercício. O mais que pude. Na elíptica, nos 25 degraus de acesso a casa, nos 100 metros da minha rua. 79 dias, treinei 63.

Voltando atrás… Peguei no comando e comecei a mexer nos botões. Parei na HBO. Vi alguns filmes, mas o melhor foi ter terminado de ver a Teoria do Big Bang e foi impossível não rir, rir, rir e depois chorar com aquele final.

Planeando meticulosamente cada saída ao exterior. A Teresa tornou-se numa gestora de stocks e prazos de validade.

A minha exigência profissional nunca foi tão grande. 79 dias, trabalhei 77. Só descansei na Páscoa e no aniversário da Teresa.

Fizemos pão, bolos e até permitimos à Leia o luxo de passar uma semana no “Pet Hotel”.

Pintamos, desenhamos, moldamos, rasgamos ou simplesmente preguiçamos.

Voltei a ler e a escrever.

Encomendamos fatos de super-heróis, brinquedos e panikes de chocolate.

Cantei os parabéns ao meu filho pelo whatsapp, num dia que vivi com o coração em lágrimas, mas com o conforto e calor de dezenas de mensagens de amigos, no mais difícil dos dias.

Para a nossa família, Abril é mês de festas e celebrações. Convenci meia-dúzia de Confrades a ficarem acordados até à meia-noite, para surpreenderem a Teresa com uma videochamada de parabéns. Adiamos os festejos do nosso namoro para data a designar e demos o nosso melhor para termos uma Páscoa digna desse nome e um aniversário de casamento como deve ser.

Fizemos vídeos malucos com a nossa Confraria, porque a Música nunca parou dentro de nós. A Teresa cantou Pedro Abrunhosa, para nós, para o Mundo, mas principalmente para a sua Mãe…

Como não sei cantar, à minha Mãe escrevi… e desabei em lágrimas sobre o teclado…

Gravei música para missas, via-sacras e procissões. Longe, voltei a estar perto das V.E.

E ainda inventei um solo de saxofone para um esplendoroso vídeo final. E que bem que soube ser apenas “mais um”.

Inundamos os directos da Paróquia com corações e no final havia sempre uma videochamada, entre lágrimas e sorrisos.

Ficamos a conhecer melhor os pais dos amigos do nosso filho, partilhamos alegrias, tristezas, frustrações e aquelas coisas de pais.

A casa ficou (e ainda está) virada do avesso. Mas, a dada altura, simplesmente desistimos de a arrumar. O Eduardo há-de ser um bom decorador de interiores.

A mesa da sala tornou-se escritório e sala de reuniões. Vestíamos uma roupa à pressa para as videochamadas, mas só da cintura para cima.

Veio o calor e montamos uma piscina no terraço, onde almoçávamos beijados pelo sol. Inventamos formas de sair à rua.

“Eduardo! Xiu! Está a ligar um cliente da Mãe!”

“Xiu! O Pai vai ligar para o trabalho dele, fica caladinho um bocadinho…”

Escrevi dissertações sobre o Jesus Christ Superstar e descobri a Sara Bareilles. Reencontrei-me com os Radiohead e ouvi Pink Floyd incessantemente.

E, por falar em reencontros, foi no dia 25 de Maio que os meus filhos se reencontraram. O Eduardo quase saltava pela cadeira do carro fora e o Lucas, tão pouco dado a demonstrar emoções, sendo das crianças mais emotivas que conheço, ofereceu-me um dos seus sorrisos mais genuínos que, para mim, valem mais que qualquer beijo ou abraço.

E foi no dia 30 de Maio que o Eduardo reencontrou a Madrinha, que não aguentou as lágrimas…

Alguém disse que a “Vida é a arte do Encontro”. Os últimos meses transformam-se na arte do reencontro. Os reencontros vão acontecendo, aos poucos, como a Natureza que acorda na Primavera após o Inverno. O Verão já não tarda…

Amanhã é dia de mais reencontros. Nos empregos, na creche…

Desisti de tirar lições do tempo que agora finda. Há algumas feridas, mas ainda hoje o Eduardo explodiu de alegria ao ver um arco-íris…

Dias do fim – parte 14

Maio 30th, 2020

A crónica de hoje é diferente.

Ao longo dos últimos 78 dias, em linha com as actividades propostas pelo Aniquibebé, creche frequentada pelo meu filho Eduardo, fui registando num diário as suas brincadeiras, actividades, curiosidades… um pouco de tudo o que ele ia fazendo cá por casa.

Esta é a última página desse diário. Escrita por mim, obviamente, mas tentando ver as coisas da perspectiva dele.

Serve também para, sem qualquer tipo de obrigação, mostrar a nossa (minha, da Teresa e do Eduardo) gratidão ao Aniqui e às suas incríveis profissionais, que souberam responder da melhor forma a todos os desafios levantados pelo COVID-19.

É bom saber que entregamos o nosso filho a estas mãos e a estes corações que choram, riem e amam connosco.

«ANIQUI- À DISTÂNCIA DE UM ABRAÇO – O FIM

Lembro-me dos últimos dias. O papá deixou de poder entrar no Aniqui. Tínhamos que desinfectar as mãos. As coisas começaram a ser diferentes.

Lembro-me do último dia.

Os papás foram buscar os meus amigos mais cedo. Havia algo de diferente. Ao fim do dia, como em tantos outros dias, eu era o único menino, à espera do meu papá. Mas, naquele dia, tão estranho, não estava sozinho. Todas as funcionárias do Aniqui estavam lá comigo. A Tete, as minhas Isabéis… É claro que me senti importante. 

Então, o pai chegou.

Como sempre, tentou animar-me e ficou feliz por me ver, mas os seus olhos estavam diferentes. Assim como os olhos da Tete, das Isabéis e das outras…

Parece que ninguém sabia muito bem o que dizer, ou fazer.

O papá, levou embora a minha mochila, a bata e todas as minhas coisas do Aniqui. Até parecia que nunca mais voltaria e percebi isso na despedida. “Até um dia destes…”

Não foi um até amanhã, ou um bom fim de semana, ou um boas férias.

Ninguém ali, naquele momento, sabia quando eu iria voltar ao Aniqui e rever os meus amigos.

Também os olhos do papá estavam diferentes.

Em casa, os papás explicaram que andava na rua um “bichinho” muito mau e que teríamos que ficar em casa durante algum tempo.

Olha que bom! Passar o tempo todo com os papás…

Os dias tornaram-se diferentes, mas sempre com o Aniqui presente. Quase todos os dias era acordado com notícias da Isabel, da Belinha, da Tete…

Foram canções, jogos e brincadeiras.

Houve um dia especial. A Belinha mandou um vídeo a cantar-nos a canção dos bons dias, como se estivéssemos na sala. Reparei que, à medida que canção ia-se aproximando do fim, os olhos dela iam ficando diferentes.

O mesmo se passou noutras ocasiões com a Isabel.

Mas eu gostava de as ver e matar saudades.

Também via as fotos e vídeos das brincadeiras e trabalhos dos meus amigos.

Todos os dias, mesmo em casa, estava no Aniqui.

Os papás ainda tentaram que eu fosse fazendo as actividades… mas eu tenho o meu feitio. Desculpem.

Quando alguém fazia anos, os amigos apareciam todos em quadradinhos no computador do papá e cantávamos os parabéns.

E todos juntos construímos uma história, que teve direito a banda sonora composta pelos papás.

Já para o fim, eu estava cansado e preguiçoso. O ritmo do teletrabalho dos papás foi aumentando. Mas o Aniqui nunca nos largou, nem por um segundo.

No momento em que soubemos quando e como eu iria voltar ao Aniqui, os papás ficaram aliviados. Não por se verem livres de mim, mas por se sentirem seguros com a forma como tudo estava a ser preparado para o nosso regresso, minimizando os riscos de nos cruzarmos com esse “bichinho” malvado.

Perante as medidas que os senhores do Governo anunciaram, o Aniqui não tremeu, não refilou, não entrou em pânico, mas arregaçou as mangas e fez o possível para garantir segurança e normalidade a todos nós. E isso deixou os papás muito felizes.

Esta semana passei lá à porta. A mamã foi entregar as minhas coisas.

Já sei que agora vou brincar mais no recreio e cá fora, que tenho que ter alguns cuidados, que já tinha antes de termos vindo para casa.

Os papás sempre estiveram muito orgulhosos pela forma como lavo e desinfecto as mãos; por não estranhar usar máscara, ou ver os adultos também de máscara. Eles sabem que me vou portar bem, porque tenho pessoas excelentes a cuidarem de mim.

Essas pessoas mostraram, ao longo destes 70 e tal dias, que somos mais que números, mais que uma mensalidade ao fim do mês. Que somos realmente uma família. O Aniqui é a nossa família na rua e passou a ser parte da nossa família em casa.

É fácil ter sucesso quando as condições são boas. Quando tudo corre bem.

Mas, quando a estrada se torna sinuosa, é quando vemos os grandes pilotos. É nos mares revoltosos que vemos os grandes comandantes.

Faltam 48 horas para voltar ao Aniqui mas, na verdade, acho que nunca saí de lá.

Em meu nome e em nome dos papás, muito obrigado a todas! 

Obrigado, Aniqui!

Eduardo Sala»

Dias do fim – parte 13

Maio 29th, 2020

Esqueçam. Não vai ficar tudo bem. Nem tudo mal. Vai ficar tudo na mesma. Já passou. Já está longe. É só em Lisboa agora.

Mas nem é o vírus que chateia. É a humanidade, ou a falta dela.

É o inenarrável assassinato do George Floyd e o aproveitamento político e social do mesmo. E se o George Floyd fosse branco? Amarelo, rosa, azul? Haveria posts, artigos, dissertações? Ou seria mais uma vítima do musculado sistema policial americano? Tiraríamos uma selfie ao lado do cadáver com uma bonita hashtag? Ou passaríamos ao lado?

São os combates entre claques…

É o egoísmo. O egoísmo nas suas mais variadas formas. Em todas.

A pandemia não revelou um mundo melhor, não mostrou o melhor das pessoas. Pelo contrário, mostrou quanto podemos ser maus.

Esqueçam.

Nos supermercados já toda a gente se atropela e empurra. A desinfecção das superfícies ocorre quando alguém se lembra. E num parque espaçoso, cheio de lugares vagos, as pessoas continuam a estacionar em cima das linhas.

É impossível «retirar ilações absurdas de uma situação excepcional”, porque ficou tudo na mesma.

Continua a haver quem seja anti-vacinas, a negar as mortes e a dizer que isto foi tudo uma “campanha da comunicação social”.

E há quem continue a ser mau. Já não sei quantos cães mortos num saco, em Bragança. Nem os animais inocentes escapam à estupidez humana.

Vai haver uma procissão em Matosinhos. Num formato especial, dizem. Acredito. Mas uma banda filarmónica vai tocar, num autocarro, 22 músicos. Estarão em segurança? Acredito. Mas fica o desprezo moral e ético por todas as filarmónicas deste país que continuam com as estantes fechadas, as partituras na pasta e os instrumentos no saco. Acredito.

Sabem uma coisa? Que se lixe! Salve-se quem puder. O juíz de partida está com a pistola no ar, mas já todos os cavalos arrancaram e nem há pista. Cada um vai como quer, por onde quer. A meta é o in finito. A sociedade já não é sociedade.

Nós é que somos bons, nós é que sabemos e à nossa volta é terra queimada.

O mundo não acabou, nem mudou. Continua a mesma merda.

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.